A CPLP E A CONSAGRAÇÃO DO
DESACORDO ORTOGRÁFICO
Por António Emiliano
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in PÚBLICO, 19/04/2012
No
passado dia 30 de Março decorreu em Luanda a VII Reunião de Ministros da
Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa [CPLP] para, entre
outros assuntos, discutirem a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. O
Ministério da Educação e Ciência português esteve representado por uma
delegação presidida pelo ministro Nuno Crato. Desta reunião resultou uma
declaração final: a Declaração de Luanda de 30/03/2012, unanimemente subscrita
pelos presentes, aponta a existência de problemas na aplicação do Acordo
Ortográfico e declara a necessidade de se rever e corrigir o Acordo (sem
referir, note- se, a necessidade da elaboração de um Vocabulário Ortográfico
Comum da Língua Portuguesa como estipula o art.º 2.º do Acordo Ortográfico).
Sobretudo, a Declaração de Luanda consagra inelutavelmente o desacordo
ortográfico no seio da CPLP e decreta a obsolescência do Acordo Ortográfico.
Nas
semanas que precederam a reunião, Angola foi tornando pública a sua posição
sobre o Acordo Ortográfico. O ministro angolano das Relações Exteriores
declarou a necessidade de se rever o Acordo Ortográfico e de se realizar um
“protocolo adicional”. O Jornal de Angola (estatal) publicou em 8/Fev um
editorial com o título “Património em risco”, em referência aos efeitos
negativos do Acordo Ortográfico na língua portuguesa. Nesse extraordinário
editorial podia-se ler: “nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só
porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante”, “queremos
a Língua Portuguesa [sic, com maiúsculas] que brota da gramática e da sua
matriz latina” e “se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que
através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica.
[...] devemos, antes do mais, respeitar a matriz [do português] e não pô-la a
reboque do difícil comércio das palavras.” A este texto — que envergonha os
portugueses que não sabem ou não querem cuidar do seu património linguístico e
que foi difundido por toda a lusofonia (dado o peso institucional oficioso dos
editoriais do Jornal de Angola) — seguiram-se outros, não menos contundentes.
No dia 29/Mar, na sequência de uma reunião de peritos da CPLP em Luanda, o
Jornal de Angola noticiava “Angola protela adopção do Acordo Ortográfico” e o
blog da Casa Civil do Presidente da República de Angola transcrevia a peça sem
comentários. O protelamento era justificado pela pretensão angolana de “estudar
e avaliar uma série de aspectos de conteúdo, no sentido de acautelar as implicações
no sistema educativo nacional.” No dia 1/Abr, notícia do Jornal de Angola
intitulada “Questões técnicas protelam o acordo” referia já as conclusões da
VII Reunião de Ministros da Educação. As conclusões da reunião ministerial
estão exaradas na Declaração de Luanda de 30/03/2012, que é clara quanto ao
futuro do Acordo Ortográfico, mais pelo que nela se não lê do que por aquilo
que, de facto, se pode ler.
O
que se lê na Declaração de Luanda é simples: os Ministros da Educação da CPLP
reconheceram que “a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 no processo de
ensino e aprendizagem revelou a existência de constrangimentos” e decidiram
proceder a “um diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na
aplicação do Acordo Ortográfico de 1990” e a “acções conducentes à apresentação
de uma proposta de ajustamento do Acordo Ortográfico de 1990, na sequência da
apresentação do referido diagnóstico.”
O
que se não lê na Declaração de Luanda, mas a ela subjaz, é também claro, para
não dizer gritante:
i)
nunca foi feito um estudo ou um esforço concertado e colaborativo no seio da
CPLP no sentido de se acautelar os efeitos nefastos da aplicação do Acordo
Ortográfico no sistema educativo;
ii)
dado que o Acordo Ortográfico só está a ser aplicado, e de forma totalmente
ilegal, em Portugal e Brasil, a “existência de constrangimentos” só se pode
referir à situação destes dois países;
iii)
a introdução do Acordo Ortográfico na sociedade portuguesa mostrou de forma
clamorosa os defeitos enormes da reforma ortográfica, logo, a ligeireza com que
a mesma foi feita e imposta;
iv)
o grau das deficiências do Acordo Ortográfico, reconhecido por todos os países
da CPLP, exige que se faça agora — 22 anos depois de assinado o Acordo — um
relatório de âmbito comunitário de problemas e danos;
v)
se o Acordo Ortográfico tem de ser “ajustado”, i.e. revisto e modificado, tal
implica, no mínimo, um novo Acordo;
vi)
não foi fixado nenhum prazo nem nenhum limite para se fazer o “diagnóstico” e
“ajustar” o Acordo Ortográfico e nenhuma das medidas aprovadas pela CPLP tem
prazo, calendário ou agenda.
Assim,
mais de duas décadas após a sua assinatura, o Acordo Ortográfico “unificador”
da língua portuguesa consegue a proeza de dividir de facto e de jure os países
de expressão oficial portuguesa, consagrando “a desagregação ortográfica da
língua portuguesa” e acentuando “os factores de desagregação da unidade
essencial da língua portuguesa”, que o próprio Acordo Ortográfico atribuía em
1990 (xenofóbica, neocolonial e retrogradamente) à “emergência de cinco novos
países lusófonos” (v. Anexo II do Acordo Ortográfico, n.º 2).
Onde
antes havia uma natural e inevitável clivagem entre o Brasil e o bloco
euro-africano da lusofonia existe hoje uma injustificável desunião entre Portugal
e os PALOP (nenhum dos quais aplica o Acordo Ortográfico) e conserva-se a mesma
clivagem luso-brasileira de sempre, agora disfarçada de unificação ortográfica.
A
situação presente resume-se a isto: Angola não ratificará nem aplicará o Acordo
Ortográfico enquanto não houver alterações; Moçambique anunciou no ano passado
que não está preparado para ratificar e aplicar o Acordo Ortográfico; nenhum
dos países africanos que ratificou o Acordo Ortográfico fez qualquer esforço ou
tomou qualquer medida para o aplicar; em Portugal (berço da língua portuguesa)
e no Brasil impera o caos ortográfico-linguístico e usa-se uma mixórdia
acordesa, enquanto no resto da CPLP se escreve PORTUGUÊS; no Brasil,
considerado por gente pouco avisada como o “motor da lusofonia”, fala-se e
escreve-se uma língua portuguesa cada vez mais distante do português
euro-africano. Não há paralelo nem precedente na história de qualquer grande
língua de cultura para esta situação difícil de qualificar.
O
facto de o AO não concitar qualquer consenso nem contribuir para unificar seja
o que for, é razão suficiente para, no mínimo, se suspender a sua aplicação e
fazer respeitar a Constituição (que protege explicitamente a qualidade do
ensino e o uso da língua nacional) e a Lei de Bases do Património Cultural
(pela qual a língua, “fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial
do património cultural português”). Tendo, ademais, o Acordo Ortográfico sido
declarado ortografia deficiente e carente de revisão, logo, provisória e já obsoleta,
a sua aplicação no sistema de ensino e nas instituições do Estado português
deve cessar imediatamente, como releva do mais elementar bom senso e com o aval
e beneplácito unânimes da CPLP.
António
Emiliano
Professor
de Linguística da UNL, autor de Apologia do Desacordo Ortográfico (Verbo, 2010)
[Nota
do Autor: na presente nota foram suprimidas diversas abreviaturas usadas no
texto publicado pelo PÚBLICO e restauradas as formas extensas correspondentes;
os itálicos de destaque foram substituídos por negritos; foi introduzida
divisão em parágrafos adicional]
Etiquetas: Acordo Ortográfico
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