Fernando Esteves
“Parece que Macau
é um poço de segredos”
MAIO 19, 2014
Ao escrever a biografia de Jorge Coelho,
Fernando Esteves revisitou Macau do final dos anos 1980. E percebeu que, quase
25 anos depois, o escândalo do fax e a teia de poder de Mário Soares ainda
deixam mais perguntas que respostas.
“Jorge Coelho, o Todo-Poderoso”, de Fernando Esteves, não é um
livro sobre Macau. É a biografia não autorizada de Jorge Coelho, para a qual o
socialista deu o testemunho sob o compromisso de não a ler previamente ou
interferir na sua construção. Mas a passagem do político português pelo
território – entre 1988 e 1991 – torna obrigatório o regresso a um dos
episódios que recolocou Macau nas páginas dos jornais portugueses: o escândalo
do fax (1990) que levou à demissão do então Governador, Carlos Melancia, e que
aqui quebra um silêncio de décadas.
Neste livro que estará à venda em Macau na Livraria Portuguesa,
o editor de política da revista portuguesa Sábado, mostra ainda como Jorge
Coelho, que ganhou a fama de “bombeiro” em Macau, se tornou num dos mais poderosos
políticos portugueses.
- Apesar de ser uma biografia parece ter tido o cuidado de
retratar o estilo de vida de Macau no final dos anos 1980. Porquê?
Fernando Esteves – Essa é uma preocupação em todo o livro.
Decidi partir do princípio que as pessoas não conheciam a realidade macaense,
assim como não conheciam em detalhe a história do PS. Mas com Macau tive uma
preocupação acrescida, pois realmente as pessoas não conhecem. Antes [de
escrever o livro] falei com muitas pessoas, com amigos meus, pessoas cultas e
informadas e a única coisa que elas sabiam sobre Macau era a história do fax. E
sabiam-na mal. Não sabiam como é que o fax tinha ido parar ao [semanário]
“O Independente”, não sabiam o que estava em causa, que tinha havido um
problema com uma empresa alemã, etc.
- E qual foi a participação de Jorge Coelho nesse episódio?
F. E. – Foi razoavelmente residual. Ele é o homem que avisa
Carlos Melancia através de um telefonema que a história está na capa d’ “O
Independente”. O segundo telefonema é de Stanley Ho…
- O que é sintomático…
F. E. – O que é sintomático. Ele oferece-se para o ajudar
dizendo-lhe que pode falar com o Governo chinês. Mas nessa altura Carlos
Melancia achava que tinha a proteção de Mário Soares [então Presidente da
República]: foi ele que o nomeou para o cargo, era amigo e [ele, Melancia]
conseguia financiamentos para o Partido Socialista através destas empreitadas.
- Como assim?
F. E. – Não havia um favorecimento directo, digamos assim. Neste
caso a Weidlepan pagou 50 mil contos [hoje mais de 6 milhões de patacas] para
ser admitida num concurso contra outras empresas que também tinham pago para
entrar. Esse dinheiro – embora isso não esteja provado – destinar-se-ia a
financiar a campanha eleitoral de reeleição de Mário Soares [em 1991]. Mário
Soares não é inocente nesta história. Não é por acaso que Carlos Melancia o
acusa de traição. É que na sequência do episódio ele vai a Belém [a sede da
Presidência da República portuguesa] absolutamente convencido de que sairia de
lá com um reforço de confiança por parte de Soares. E o que ele lhe diz foi:
“Agora só estou a pensar na minha reeleição e você é um elemento tóxico.
Portanto ou se demite ou eu demito-o. E era mais digno se fosse você a
demitir-se”. E Carlos Melancia acaba por se demitir.
- Carlos Melancia, que deu o seu testemunho para o livro, falou
pela primeira vez sobre este caso.
F. E – Há três revelações politicamente relevantes neste
capítulo. O Carlos Melancia ter aceitado
falar – nunca tinha falado sobre o assunto – e acusar Mário Soares de traição.
O papel de Soares em todo este episódio tem sido continuamente alvo de limpeza
em termos comunicacionais. Só há uma pessoa em Portugal que investigou este
caso a sério, que foi Joaquim Vieira e pagou o preço por tê-lo feito [foi
afastado do semanário Expresso]. Afrontar o Mário Soares em Portugal é crime.
Mário Soares tem muito boa imprensa, muito poder e os jornalistas nunca tiveram
coragem de o afrontar. A terceira revelação é o facto de o Carlos
Melancia dizer que o dinheiro – os 50 mil contos – foram devolvidos à Weidlepan
pelo Rui Mateus [um dos fundadores do Partido Socialista].
- O Joaquim Vieira [também autor da biografia de Mário Soares]
disse que ao investigar os episódios passados em Macau sentiu que eram ainda
obscuros. Neste livro também sentiu essa relutância?
F. E. – Sim. Parece que Macau é um poço de segredos. As pessoas
sabem todas muito mais do que querem dizer. Ou melhor, do que podem contar. O
Jorge Coelho disse-me: “Sei tudo o que se passou [do escândalo do fax], mas não
lhe vou contar”. Outras pessoas que sabem a história também não quiseram
contar. E pergunto-me…
- Quem estão a proteger?
F. E. – Sim, quem estão a proteger. De quem têm medo. Por norma
quando passa muito tempo as verdades históricas começam a vir ao de cima. No
entanto, o que temos são ainda suposições. Não posso dizer com toda a
propriedade – assim como Joaquim Vieira não o faz – que os 50 mil contos foram
para Mário Soares e para a reeleição. Existem fortíssimos indícios de que isso
tenha acontecido, mas também pode não ter sido. Não há ninguém que tenha a
coragem de o dizer. Nem o Carlos Melancia que falou pela primeira vez sobre o
caso. O que é muito sintomático sobre a forma como as pessoas se relacionam com
o seu passado no território.
- Nas entrelinhas do que diz parece perceber-se que a pessoa que
querem proteger é Mário Soares.
F. E. – É Mário Soares, acho que sim. Mário Soares é o
‘paterfamilias’ do PS. A partir do meio do primeiro mandato o único interesse
dele é a reeleição. Ponto. Ele é uma pessoa que vinha de famílias abastadas.
Não é pessoa que procure dinheiro. Mas precisava de dinheiro para se reeleger.
E há outro pormenor entretanto – ele foi convencido pelas pessoas que o
rodeavam que com a privatização da comunicação social [em Portugal] precisava
de um grupo de media para o ajudar na reeleição. De ter boa imprensa. E acabou
por patrocinar de forma discreta a criação de um grupo de media [Emaudio].
Procurou investidores como Rupert Murdoch [da News Corporation] e Robert
Maxwell [do Mirror Group]. E depois aparece o investimento na TDM também… [a
possibilidade de entrada de capital no canal de televisão].
- Que acaba por cair…
F. E. – Porque o Maxwell achou que havia coisas que não eram
transparentes e decidiu sair. Percebeu que era um projecto político destinado a
financiar uma campanha eleitoral.
- Refere as circunstâncias em que Jorge Coelho foi essencial em
Portugal. Por exemplo, na escolha de José Sócrates como candidato do PS antes
das eleições de 2005. Em Macau é possível saber o que poderia ter sido
diferente se não fosse Jorge Coelho?
F. E. – Acho que a passagem dele pelo Governo de Macau não é
decisiva. Apesar de tudo foi uma figura secundária. Teve numa pasta importante
[secretário-adjunto para a Educação e Administração Pública], mas não essencial
e esteve pouco tempo. Não acho que tenha deixado uma marca indelével no
território como deixou em Portugal. Cimentou uma aura de competência e
combatividade, importante para ganhar espaço no PS. Veio para cá como militante
anónimo e voltou como membro do Governo [ministro-adjunto de António Guterres].
- Foi mais Macau que fez por ele do que o contrário?
F. E. – Sim. Macau ajudou mais Jorge Coelho, do que ele Macau.
- Como Jorge Coelho recorda Macau?
F. E. – Há aqui um vínculo inexplicável. Todas as pessoas que
entrevistei sobre Macau sentem uma nostalgia enorme sobre o tempo que passaram
aqui ou acompanham essa nostalgia com um desejo fortíssimo de voltar. Jorge
Coelho não deseja voltar até porque a vida dele mudou muito, mas fala com um
carinho brutal e saudade enorme. Acho que o território deve ter algum segredo
porque marca de forma brutal as pessoas. Aliás, um dos capítulos fala sobre a
subida do António Guterres ao poder em 1995 e quando se forma o que na altura
se designou “Grupo de Macau”. Um conjunto de pessoas que passou pela
administração de Macau e que depois “contaminou” todo o primeiro governo de
Guterres.
- Foram quatro ministros…
F. E. – Foram quatro ministros, mas também secretários de
Estado, chefes de gabinete, assessores… Toda a administração estava carregada
de pessoas que vieram de Macau. Há ali laços de solidariedade… Nem sequer digo
no sentido depreciativo. Não estou a dizer que seja um lobbyorganizado. O que
acontece é que se criaram laços de solidariedade tão fortes que as pessoas
quando precisavam de escolher entre duas figuras para um lugar escolhiam a que
esteve no território pois havia aqui uma espécie de irmandade.
- Entrevistou as pessoas de Macau, mas nunca veio cá?
F. E. – Nunca. Aliás, tem sido muito curioso estar cá [o
jornalista veio acompanhar Cavaco Silva]. Ontem passei à frente do antigo
Palácio do Governador. Abro o capítulo sobre Macau com um episódio épico da
passagem do Jorge Coelho por aqui, que cimentou a alcunha dele de “bombeiro”. É
uma manifestação de 2500 polícias à frente do Palácio sob uma chuva tremenda.
Eles manifestavam-se pelo facto de os outros funcionários públicos terem sido
aumentados e eles não. O Governo entrou em pânico e ninguém teve coragem de
encarar a multidão. Aquilo estava muito complicado. Os polícias ameaçavam
invadir o Palácio. Entretanto as autoridades chinesas já tinham uma força de
intervenção pronta a entrar no território e é Jorge Coelho que salva a
situação. Ele estava a passar pelo Palácio a caminho de casa e eles falam-lhe
da possibilidade de os chineses irem lá limpar aquilo [um representante dos
chineses no território disse que estavam 5000 militares na fronteira à espera
de avançar]. E ele diz: “No momento em que deixarmos que os chineses venham
aqui, a nossa presença deixa de fazer sentido. Estamos a admitir que não somos
capazes de administrar o território. Vamos ter de ser nós a resolver”. Então
vai para a frente do Palácio, sobe a um carro com um megafone [e tradutor ao
lado] e começa aos berros naquele estilo bélico dele e quando acabou de falar
vê que a multidão dispersou.
- Tal como Jorge Coelho outras jovens promessas do PS como
António Vitorino e Maria de Belém passaram por Macau. Macau é como um
propulsor? Teve o efeito de fazer com que alguém que chegava como anónimo
saísse como membro do Governo?
F. E. – Com algumas pessoas teve. Era uma maneira de relançar a
sua carreira política. Era uma questão de aventura, por outro lado ganhavam
mais dinheiro e prestígio que não teriam em Portugal.
- Há o caso de Rosado Correia, ex-ministro português, que foi
interceptado no aeroporto com uma mala de dinheiro de Macau que ia levar para o
PS. Um dos interesses de enviar tantas pessoas para o território era o de
angariar financiamento para o partido?
F. E. – Não posso dizer de forma taxativa. Mas se quiser a minha
opinião, acho que sim. Mas é uma opinião que não está alicerçada em factos.
Acho que o PS sabia que passava aqui muito dinheiro. [Quem vinha para cá]
estava muito longe de Portugal e eles nomeavam comissários políticos que lhes
pudessem fazer chegar o dinheiro.
P. S. A.
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